Sobre a imortalidade
Somos seres imortais. Não deixamos
de existir, mesmo que a nossa matéria pereça. Certamente alguém mais cético vai
dizer que isso é papo de religiosidade, toda aquela história de céu, inferno,
etc. Mas não, meu texto não tem nenhum cunho religioso. Quando me refiro à imortalidade humana, não
abordo nenhuma crença ou descrença pessoal. É um fato.
Pois bem, vou ilustrar minha
ideia. Uma das minhas avós se chamava Helena, nome que carrego em minha
existência desde que vim ao mundo. Vó Helena faleceu de câncer, descoberto em decorrência
de um acidente de carro, há mais de vinte anos. Era uma pessoa extremamente
paciente e gentil. Era prestativa também, pois todas as semanas ela assava pão
e cuca de banana para nós. Ambos eram preparados no forno a lenha, de forma que
muitas vezes eles passavam do ponto e chegavam até nós com uma cobertura cor de
carvão na casca. Mas isso nunca nos impediu de comer. O carinho com que foram
feitos sobrepujava qualquer defeito no tempo do forno. Mas se alguém fizesse
algum comentário a respeito, minha doce avó não ficava por baixo e exclamava
com veemência: “Pelo menos está bem assado”. Estava mesmo. Hoje, quando alguém
na família esquece algo no forno, logo o slogan de defesa da vó surge.
Essa é uma prova da imortalidade
dela. Claro que há muitas outras. Muitas e muitas frases pronunciadas e gestos
realizados por ela que a trazem de volta a vida todos os dias. Ainda ouço a entonação
da voz, o sotaque levemente alemão, a bondade em seu olhar quando dizia suas
doces frases. “Mas não é todo dia”, ela falava em tom conciliatório, quando nos
colocávamos diante de alguma delícia culinária que nos levava a exceder na
quantidade. Minha avó era obesa, ainda assim ela usava essa frase sempre que
queria comer um pouquinho a mais. Ou então sua máxima, que me faz recordá-la sempre:
“Ou é forno, ou é fogão”. Se você fosse visitá-la no horário do almoço e
naquele dia ela estivesse assando pão, não haveria comida. Além do pão, claro.
Sua lenta habilidade não permitia que administrasse as panelas e o forno ao
mesmo tempo. Ainda assim, priorizando um deles, seus casquinhos escureciam,
imagine se estivesse fritando carne ou cozinhando arroz... Era uma decisão bastante
sábia.
Ao contrário de minha avó, tenho
a habilidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Enquanto faço o almoço,
bato e asso bolo. Meus casquinhos não ficam escurecidos. E por isso eu lembro
tanto dela. Ela deixou nosso convívio quando eu era uma meninota de onze anos.
Nunca tive a oportunidade de lhe servir um almoço cozinhado concomitante com o
bolo. Nunca pude mostrar essa habilidade que desenvolvi. Mas, quem sabe, daqui
uns bons anos, quando eu estiver cozinhando para meus netos, essa agilidade e
destreza se deteriorem. Aí vou descobrir que, em função da lentidão que a idade
avançada produz, não poderei mais assar um bolo e preparar o almoço ao mesmo
tempo. Nesse caso, direi para meus netinhos, com o mesmo carinho e gentileza da
minha avó: “Hoje não tem almoço... Ou é forno, ou é fogão”...
É maravilhoso perceber o quanto
as pessoas que amamos são imortais. E essa imortalidade nos é apresentada em
fatos tão pequenos, tão ínfimos. Meu marido perdeu sua avó há pouco mais de um
ano. Ela também era uma pessoa excepcional por seu altruísmo. Todos os domingos
eu costumo me lembrar dela, no momento em que estou preparando o creme da
maionese. Quantas vezes, ao misturar o óleo, o creme desanda e fica dessorado? Imediatamente
a vó Laura surge em minha mente, dizendo com propriedade: coloca água, já
conserta. E conserta, viu? Nunca mais perdi meus cremes de maionese graças a
ela. Mesmo depois de sua partida, seu ensinamento ficou. Como tantos outros.
Ela jamais morrerá para mim.
Enfim, eu precisava falar dele,
meu amado pai. Todos os anos, no dia de finados, ele se levanta bem cedo e ia
até o cemitério. Na entrada, comprava um pequeno arranjo de flores. Subia lentamente
e buscava no meio de tantas lápides quase todas iguais, aquela que se
distinguia pela pessoa que repousava ali, pela essência que trazia. No caso,
era o túmulo dos meus avôs. Ele parava, olhava por um tempo e fazia uma oração
silenciosa. Não era muito demorada, pois ele era um homem de poucas palavras. E
afinal, as coisas mais importantes são rápidas de dizer: “Eu te amo”, “sinto
sua falta”, “espero que esteja bem”. Em seguida, ele procurava um lugar para
acomodar o vasinho. E assim era sua visita ao cemitério no dia dois de
novembro. Em silêncio, concentrado... Como um ritual.
Pode ser que para você não faça
sentido essa tradição. “Você deve fazer pelas pessoas enquanto estão vivas”,
você dirá. “Os mortos não poderão admirar as flores”. Não se trata disso. Que
devemos amar as pessoas enquanto elas estão entre nós é verdade irrefutável. No
entanto, depois que eles partiram, pouco nos resta fazer. A não ser preparar a
comida que eles gostavam, repetir as frases que eles falavam, refazer os
rituais que eles faziam... É pouco, eu sei, principalmente depois de tudo o que
eles fizeram por nós. Depois da marca imortal que eles deixaram em nossas
almas. Eles nunca serão esquecidos e, dessa forma, nunca morrerão.